O lobo-guará (
Chrysocyon brachyurus) é um magnífico animal nativo da América do Sul, o maior canídeo selvagem do continente e o mais alto em todo o mundo.
Resistiu a diversas eras glaciares em plena era do gelo e
quando o Pleistoceno
estava a chegar ao fim, levando com ele inúmeras espécies em mais um
evento de extinção em massa, foi o único dos grandes canídeos a
sobreviver e chegar até nós.
Trata-se de um animal enigmático, que tem lobo no nome, mas não é um lobo, que parece uma raposa, mas não é uma raposa.
Uma relíquia e um animal fantástico, mas nem por isso livre do perigo de extinção. Conheça-o melhor ao longo deste artigo.
Características do lobo-guará
O
lobo-guará é também conhecido apenas como guará, ou aguará, aguaraçu,
lobo-de-crina, lobo-de-juba (tradução literal do nome comum em inglês,
maned wolf) e ainda lobo-vermelho.
Ao
olhar para um lobo-guará, saltam à vista as patas particularmente
longas e negras, como se estivessem calçadas com meias, que lhes permite
observar tudo em redor por cima da erva alta.
São também
características as orelhas grandes, a pelagem vermelho dourada e uma
espécie de crina negra na nuca, que lhe dá origem ao já referido nome em
inglês.
Um adulto mede cerca de um metro de altura e pesa entre 20 e 25 quilos.
Estes lobos são animais solitários, ao contrário dos
verdadeiros
lobos que vivem em alcateias com uma estrutura social complexa. Muito
tímido, o lobo-guará é largamente inofensivo para o ser humano, ao
contrário do que a opinião popular por vezes transmite.
Vivem entre 12 a 16 anos, tendo em conta observações feitas em cativeiro.
Uma relíquia do passado
A história evolutiva do lobo-guará faz deste um animal verdadeiramente único e especial.
O
lobo-guará não é um lobo, não é raposa, um coiote, chacal ou mabeco.
Trata-se de um canídeo distinto e a única espécie conhecida do seu
género (
Chrysocyon).
Sobreviveu à extinção que se estendeu pela transição do Pleistoceno para o Holoceno, há quase 12 mil anos e que
levou
animais seus contemporâneos, que nós só conhecemos pelos seus incríveis
fósseis, como mamutes, mastodontes e tigres-dentes-de-sabre.
Um
estudo publicado em 2003 sobre a anatomia do cérebro de vários canídeos, relacionou o lobo-guará à também já extinta
raposa-das-falkland (
Dusicyon australis) e às raposas-sul-americanas (género
Lycalopex).
Curiosamente, se o lobo-guará não é um lobo, as raposas-sul-americanas também não são
verdadeiras raposas — mas que piada teria os nomes baterem certo?
Ilustração do lobo-guará de 1978, por Piro Cozzaglio, no livro Rare and Beautiful Animals de Francesco Salvadori e Pier FlorioFotografia:
PINKÉ / Flickr
Mais tarde, em 2009, um novo estudo baseado na análise de ADN, demonstrou que os canídeos do género
Dusicyon (a raposa-das-falkland e o seu primo continental,
Dusicyon avus, extinto por volta do ano 1.000 a.C.) são os parentes mais próximos do lobo-guará.
Esse estudo mostrou também que o lobo-guará e a raposa-das-falkland terão divergido do seu ancestral comum há cerca de 6,7 milhões de anos.
Uma verdadeira relíquia do passado que temos a honra de conhecer no presente.
Onde vive e o que come
O lobo-guará habita florestas, savanas e pântanos desde o nordeste do Brasil (no Cerrado, um dos maiores
hot-spots
de biodiversidade do mundo) até ao Paraguai a sul e Peru a oeste.
Também é encontrado em pequeno habitats na Argentina e na Bolívia.
O Uruguai fazia parte do seu habitat, mas acredita-se que tenha sido extinto naquele país durante o século XIX.
Estes
lobos são omnívoros, com uma alimentação bastante variada. Caçam
pequenos mamíferos, pássaros, répteis e insetos e também se alimentam de
ovos, fruta e vegetação. A fruta, ou mais precisamente o fruto da
lobeira (
Solanum lycocarpum), representa quase 50% da sua dieta.
Caçam
principalmente durante o anoitecer, noite e amanhecer e passam a maior
parte do dia a descansar. No entanto, em dias frios, de céu nublado ou
após uma chuva, é possível ver o lobo-guará ativo a qualquer hora, pelo
que a sua atividade parece estar mais relacionada com a temperatura e
humidade do que com hábitos noturnos.
O lobo-guará caça sempre sozinho.
A reprodução e os lobinhos negros
Os filhotes de lobo-guará nascem pretinhos e até esta legenda está a negrito
Fotografia: Paul Caster / Little Rock Zoo
O lobo-guará é um
animal monogâmico, ou seja, os casais formam-se geralmente para toda a vida, embora só vivam juntos durante a época de reprodução.
Como
animais solitários que são, vivem sozinhos e praticamente independentes
um do outro durante a maior parte do ano, mas ainda assim partilham e
defendem o mesmo território, com cerca de 25 a 50 quilómetros quadrados.
A época de reprodução decorre entre Abril e Junho.
As
fêmeas dão à luz entre um a quatro lobinhos por ano, nascidos entre
Junho e Setembro, depois de uma gestação de cerca de 65 dias. Cada bebé
pesa cerca de 500 gramas quando nasce.
Os bebés lobinhos veem ao mundo com uma pelagem quase toda negra, bem diferente da dos pais. A coloração
normal vai sendo adquirida ao longo dos meses seguintes.
Filhote de lobo-guará com pouco mais de dois meses
Fotografia: Zoo Liberec
Antes
pensava-se que a fêmea tomava sozinha conta dos bebés, mas observações
em cativeiro mostram os machos frequentemente a cuidar dos filhotes,
lamber-lhes o pêlo, defendê-los e alimentá-los.
Estes lobinhos
atingem a maturidade sexual por volta do ano de idade e dispersam-se do
território onde nasceram, embora não costumem acasalar antes dos dois
anos.
Futuro incerto
O lobo-guará tem poucos inimigos naturais. Praticamente só os
grandes felinos lhe podem fazer frente, como jaguares ou pumas.
Mas,
tal como em tantos outros animais, a expansão humana veio trazer uma
ameaça que não conheceram até um passado recente: destruição de habitat,
particularmente para conversão em áreas agrícolas.
São animais
que necessitam de espaços amplos e ininterruptos (para não perderem
contacto com o par de acasalamento) e só no Cerrado perderam cerca de
80% do habitat original.
Além da destruição de habitat, estes
lobos são mortos nas estradas em atropelamentos e também por pessoas em
busca de partes dos seus corpos que acreditam ser poderosos amuletos.
O
lobo-guará não goza de grande reputação junto dos fazendeiros, que
temem ataques aos animais domésticos. O lobo-guará é de facto um dos
maiores animais da fauna sul-americana e tem por isso uma presença capaz
de intimidar. No entanto, os seus dentes e mandíbulas são demasiado
pequenos para caçar grandes animais (um pouco à
semelhança do tigre-da-tasmânia).
Ironicamente, o lobo-guará é muito útil a libertar plantações agrícolas de
pestes, como coelhos e pequenos roedores dos quais realmente se alimenta.
Outro problema que se sabe afetar os lobos, embora seja incerta a sua gravidade, são as
doenças de cães que contraem em contacto com estes, tais como leishmaniose, raiva, cinomose, parvovirose, entre outras.
Na
Lista Vermelha da IUCN o lobo-guará está classificado como “quase ameaçado” e no IBAMA (Brasil) como “vulnerável”. O que estas classificações
querem dizer
é que a espécie não se encontra em risco iminente de extinção, mas esse
pode ser o caso se medidas de conservação não forem aplicadas e
controladas.
Legalmente, é proibido caçar o lobo-guará em todos os países onde ele habita.
Curiosidades
- O lobo-guará é capaz de rodar as suas grandes orelhas, sensíveis como radares, para ouvir e localizar as presas;
- Quando
se sentem excitados ou ameaçados, a crina negra no pescoço fica com o
pêlo todo ereto, o que lhes dá uma aparência mais intimidante;
- O lobo-guará não utiliza as garras para escavar, mas sim os dentes;
- A urina do lobo-guará tem um cheiro semelhante ao cannabis. Tal facto já levou as autoridades holandesas ao Zoo de Roterdão em busca de um suposto fumador de erva que não existia;
- No Brasil, há quem acredite que a vocalização noturna deste lobo prediz mudanças no clima;
- Também
existe uma lenda sobre o lobo-guará ter poderes mágicos no seu olhar,
capaz de hipnotizar presas, predadores e até caçadores humanos;
- O lobo-guará já esteve representado na moeda de 100 cruzeiros, que circulou no Brasil entre 1993 e 1994;
- A lobeira, fruta de eleição do lobo-guará, recebeu o seu nome precisamente por causa deste animal.
O lobo que não é lobo — conclusão
Como
vimos, o lobo-guará é um animal mais especial do que à primeira vista
possa aparentar. É uma preciosidade da nossa fauna, que transporta no
sangue uma vasta herança genética dos tempos pré-históricos. Um animal
com hábitos e características bem peculiares e diferentes de todos os
outros canídeos.
Mas é também um animal com futuro incerto. Por
ser grande, deixa algum desconforto e receio em quem o vê ao perto,
ignorando que na verdade só se alimenta de pequenos animais, muita fruta
e é praticamente inofensivo para nós.
Da próxima vez que vir um
lobo-guará, não tenha receio. Não está a olhar para um perigo iminente.
Está a olhar para uma relíquia do passado que merece o seu espaço
preservado no mundo dos animais.